Sobre o método da Análise Ativa

Método de interpretação teatral criado por Stanislavski entre 1936 e 1938, propõe que a análise e a própria criação do personagem sejam realizadas em ação, inserindo a atividade psicofísica do ator nesse processo, o que elimina o antigo trabalho preparatório de leituras e estudos teóricos anteriores à ação cênica.

Introduzido no Brasil por Eugênio Kusnet.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Eugênio Kusnet - Por Heloísa de Toledo Machado



     Para começar a falar de Kusnet, seria necessário, primeiramente, delimitar o território de sua ação, dentro do qual nós seremos, então, obrigados a nos manter. Esse território, na verdade, estrutura-se como uma espécie de desterritorialidade, onde vemos possibilidades de deslocamento: do centro para as bordas, as margens, e destas em direção a novos centros, talvez descentralizados. A ação de Kusnet deslocava o espaço da direção teatral e também do jogo do ator em direção a novas extensões, ainda não nomeadas, conseqüentemente, quase indefiníveis. Kusnet não era encenador. No entanto, fez algumas encenações. Mas sua contribuição mais importante para o teatro brasileiro não se encontra aqui, ainda mais porque ele, por várias vezes, declarou seu desinteresse pela encenação. O que lhe interessava era outra coisae unicamente isso: o ator. Ele foi, então, levado a criar um novo território de enunciação, onde seu discurso podia ser ouvido.
     No Brasil, o cargo, o espaço e o território da direção de ator foram descobertos por ele. Isso pode causar discussões, pois o problema de "descobertas" ou "descobrimentos" em todos os campos é controverso, pois as idéias são constantemente retomadas e inventar o novo é sempre uma ilusão. O importante é verificar o poder de ação de um fato para que seja medido, do ponto de vista qualitativo e não quantitativo, como elemento significativo de um movimento dentro da História. E, aqui, pode-se afirmar que, no Brasil, as pesquisas sobre o jogo do ator encontraram uma de suas mais altas expressões no trabalho de Kusnet.
    Foi com ele que o sistema stanislavskiano, já existente dentro do discurso do ator brasileiro, pôde se desenvolver como metodologia estruturada, cuja função era dar ao ator uma articulação do material utilizado na hora da criação. Foi, sem dúvida, também com ele que o pensamento de Stanislavski encontrou um campo de ressonância onde seus princípios seriam guardados, embora elaborados de uma outra forma. Kusnet reconheceu em Stanislavski uma linha de conduta dentro da qual sempre quis se manter e a partir da qual decidiu criar.
     Mas ele não foi, no entanto, estritamente fiel. Muito pelo contrário, soube marcar com personalidade sua atividade teatral e elaborou um método próprio. Soube, portanto, sincronizar o discurso de Stanislavsvki, dando ao sistema a possibilidade de assumir conotações novas, próprias a um outro momento e a um outro espaço, impedindo-o assim de correr os riscos do anacronismo. E soube também trair suficientemente o sistema, com toda irreverência que isso implica quando estamos no cone sul do planeta, no Brasil, de maneira a torná-lo presente lá onde ele queria evocá-lo: em uma espécie de brasilidade muito mais contemporânea e talvez mais cosmopolita.
      Porém, uma base constante do pensamento stanislavskiano o acompanhou sempre, o que me permite dizer que, se nós temos, no Brasil, um segmento teatral e quase uma espécie de raciocínio artístico que podem ser reconhecidos como sendo a continuidade de uma herança essencialmente stanislavskiana, isso deve ser identificado principalmente em Kusnet.
     Além de uma função na história da trajetória de Stanislavski no Brasil, na qual é bem evidente a importância capital de muitos outros encenadores e professores, acredito que a função de Kusnet se destaca por inscrever-se  no território específico da técnica, o mesmo aliás em que Stanislavski era mais pedagogo e menos encenador. Kusnet trouxe, pela primeira vez, ao Brasil, um conjunto de ferramentas organizadas metodologicamente que permitiam ao ator ser autônomo. E, se outros métodos de formação do ator foram criados no Brasil, o de Kusnet é o único que se diz essencialmente stanislavskiano e se identifica como tal. É a associação desses dois dados, a criação de um método organizado somada à persistência de colocar-se no domínio do raciocínio stanislavskiano, que distingue o trabalho de Kusnet e o torna único.  
     Podemos considerá-lo stanislavskiano sobretudo por causa da preocupação de querer conferir ao ator essa autonomia criadora capaz de lhe fazer assumir uma função central na criação do espetáculo. E é como ator, diretor de atores e professor de interpretação que ele tenta chegar a isso, trabalhando para deslocar as margens em direção ao centro, ou seja, deslocar o território no qual se inscreve a linguagem do jogo dramático em direção a uma nova noção de centro, onde se impõe uma nova maneira de considerar o fenômeno teatral.
      A noção propriamente dita de diretor de atores, e a maneira como ele a exerceu criam-nos, logo de início, um problema de avaliação histórica muito mais complexo do que poderia parecer. Quando queremos historiar o teatro, não podemos esquecer que este é uma multiplicidade de sistemas de significações decorrentes de diferentes linguagens. A qual, então, devemos nos referir? Existe uma história da literatura dramática, uma história da encenação, uma história das artes plásticas do espetáculo e uma história do jogo do ator. Kusnet é objeto de estudo dessa última e é por ele que, no Brasil, esse território começa a ser definido. Kusnet fez uso do que chamamos de Sistema, diferente de Stanislavski, para ajudar na elaboração de um outro sistema, que se apresenta como um conjunto coerente de signos, uma linguagem. E, se o próprio teatro procura definições de seu sistema de significação e se o signo teatral por si só é difícil de ser identificado devido ao fato de ser esse conjunto de sistemas, ainda mais complexa é a tarefa de definir o sistema de significação do jogo dramático, uma vez visto de forma isolada. É, talvez, por meio da técnica que um local de enunciação particular começa a ver suas possibilidades de identificação.
     Digamos que a técnica seja a maneira, o modo de agir e de abordar o material com o qual o artista se expressa. Técnica é sistema, já que se compõe de unidades articuladas de maneira específica por intermédio de um código. A noção de técnica parece-me essencial na arte contemporânea, na medida em que ela é processo e, hoje, mais do que ver os resultados, o que conta é olharmos o percurso, o avesso, como já foi dito por Maryvonne Saison em uma obra dedicada à técnica de improvisação e no Brasil, também por Mário de Andrade,em seu livro O Banquete, ao demonstrar a importância da técnica como princípio estrutural da criação, capaz até de lhe trazer uma conotação ideológica. 
     Então, se tentarmos olhar Kusnet através da História, ou a História através de Kusnet, poderíamos dizer que seu papel foi determinante justamente por ter provocado esse novo movimento, o qual desencadeou um determinado tipo de discurso e uma certa perspectiva técnica na interpretação do ator brasileiro.
     Focalizando fatos e movimentos concretos da História capazes de esclarecer a contribuição de Kusnet para a prática do Teatro Brasileiro, é necessário resumir seu percurso ressaltando que, por uma espécie de sensibilidade histórica, ele esteve presente nos momentos mais signiicativos do teatro brasileito, dito moderno.
     De origem russa, ele emigrou para o Brasil no fim dos anos de 1920. Aqui chegando, abandonou rapidamente o teatro para voltar somente vinte anos depois, no TBC - Teatro Brasileiro de Comédia -  com seu amigo Ziembinski, que lhe deu a certeza de que um teatro de equipe estava nascendo no Brasil. Mais tarde, aderiu à jovem trupe do Arena e realizou ao lado de Gianfrancesco Guarnièri, um dos espetáculos mais importantes dessa companhia. Em seguida, aderiu a outra jovem trupe, o Teatro Oficina, e, mais uma vez ele esteve presente em muitos momentos marcantes da história do teatro brasileiro, dentre os quais se destaca Os Pequenos Burgueses, de Gorki, encenado por José Celso Martinez Correa, que se tornou um dos pontos culminantes da interpretação no Brasil. Nesse teatro, do qual nunca se desligou completamente, Kusnet foi professor de interpretação da trupe e criou um estúdio, à maneira de Stanislavski, no qual seu método começou a ser desenvolvido.
     Nesse ponto, porém, deve-se mencionar sua personalidade, pois é na sua atitude pessoal perante o teatro, o trabalho e o próximo que verificamos, em parte, a explicação de linha de conduta, muito ética, capaz de nos mostraro sentido de sua ação, o que é muito stanislavskiano.
     Desde o início, Kusnet tinha o hábito de ajudar, orientar e, mais tarde, ensinar verdadeiramente os atores. E ele ensinava o tempo todo, durante ensaios e aulas. Nele, muitas vezes, o pedagogo estava mais presente do que o ator. Kusnet se colocou então em um território novo, ambíguo: ele não assinou todas as suas interferências, contudo elas existem.
     Mais tarde, Kusnet começou a dar aulas em escolas diversas, a dirigir atores e a difundir seu método no teatro brasileiro. Cada vez mais, os atores dirigiam-se a ele, chamavam-no, procuravam-no, pediam para serem ajudados quando uma dificuldade aparecia na hora da criação do personagem e, muitas vezes, em particular, fora do ambiente de trabalho. O território de sua ação no movimento do teatro brasileiro  é, nesse caso, não-especificado, novo, informal. Ele estava um pouco por todos os lados, por trás da criação dos outros: uma espécie de "eminência parda", de treinador, cuja ação era "clandestina" e a modéstia, evidente e necessária. Para ele, o importante era o ator; seu projeto punha-se fora de sua existência individual. Mas a História possui sua lógica e pede-nos agora para evocá-la a fim de desvendar os vestígios de sua intervenção. Isso nos obriga a vê-lo não somente como o grande ator que foi, como professor e autor de livros, mas como o precursor de um discurso e de um procedimento metodológico; como o criador de um território, de um local insólito e muito contemporâneo; como inovador, visto que ele deslocou uma noção de centro convencional em direção a um ponto onde somos obrigados a nos desfazer de alguns procedimentos tradicionais de avaliação histórica e nos curvar sobre um novo objeto: a história do Jogo do Ator.
     Seu caráter inovador, no entanto, não se limita a isso, em sua função histórica, pois, como pedagogo e pesquisador do sistema stanislavskiano, Kusnet nos propôs uma técnica igualmente nova, cuja abertura estrutural denuncia sua atualidade. Essa técnica é o Método da Análise Ativa. É necessário dizer que foi no fim de sua vida, em meados dos anos 1970, depois de uma viagem de estudos à extinta União Soviética, em 1968, quando já praticamente não interpretava mais para se consagrar ao ensino, que começou a elaborar esse método novo, bem diferente daquele empregado anteriormente. Os princípios da Análise Ativa, extraídos do Método das Ações Físicas, de Stanislavski, foram-lhe revelados pelo livro Toda a Vida, de Maria Knabel, citado por Kusnet (1975). A partir desses dados e partindo exclusivamente de improvisações, ele começou uma pesquisa sobre a ação física e a ação analítica, ou análise ativa do personagem. A análise ativa, da forma como Kusnet a desenvolveu, propõe-nos uma técnica aberta, inacabada, móvel, que solicita ao ator assumir a autonomia enquanto protagonista da ação, fazendo-o escolher o percurso sempre inesperado do impromptu e evitando o conformismo inevitável dos métodos fechados.
     Para terminar, deve ainda ser citado um fato que testemunha um outro aspecto inovador de seu trabalho stanislavskiano no Brasil: Kusnet era um dos melhores atores brechtianos de sua época. Isso se explica pela importância que ele atribuía ao aspecto exterior e visível dos signos com os quais montava o personagem, pois era necessário mostrá-lo enquanto imagem visual e auditiva, o que exigia um estudo detalhado de seu aspecto corporal. A isso ele nomeava "meios físicos de comunicação". Essa necessidade que Kusnet tinha de dar forma, de materializar concretamente a ação interior e visível, permitiu-lhe ter uma concepção do sistema stanislavskiano que se aproxima muito daquela que encontramos em Brecht, sobretudo nas suas jornadas de estudos sobre Stanislavski. Foi justamente no Método das Ações Físicas, o qual Brecht declarou ser a contribuição mais significativa de Stanislavski para o novo teatro, que Kusnet, mais tarde, encontrou o meio de integrar o corpo e o psíquico, quebrando as falsas fronteiras que rompiam a unidade existente entre um impulso e seu ato. E isso sem esquecer que todo ato que se efetua sempre no seio de uma situação, de um contexto, as "circunstâncias propostas", cuja especificidade temporal é sempre histórica. Encontrar o sentido e a lógica de uma situação é identificar a corrente fatual, a fábula, seja ela contínua ou descontínua. É também chegar à estrutura narrativa de um texto, na qual se inscrevem os movimentos provocados pelas ações físicas,
Enfim, não é somente em seu trabalho como ator que vemos pontos comuns entre Kusnet e Brecht, mas também na sua metodologia, sobretudo nas suas pesquisas sobre uma análise ativa do material fictício, em que a exterioridade manifestada pela ação é o próprio evento e a descoberta de seu universo interior não é possível senão por meio da vivência corporal dos fatos.
     Além disso, o centro do problema - a identificação ou a não-identificação - foi então deslocado para outro ponto, onde se achava a possibilidade de coexistência cênica de um personagem, elaborado com toda a riqueza de seu "monólogo interior", e de seu intérprete, um ator crítico que podia assim mostrar o significado do gestus nas suas implicações e contradições mais sutis. Kusnet abriu a "quarta parede" para expor não somente uma perspectiva aprofundada do mundo do personagem, mas também a do mundo do ator, que se mantém consciente da presença dos olhares críticos a ele dirigidos. Ele nos mostrou que entre esses dois sistemas - segundo uma expressão do próprio Brecht - não existem as dicotomias insuperáveis que nós temos o hábito de ver entre ser ou não ser o personagem; o que existe é o território da "dualidade do ator", que vem a ser o fundamento primordial da dialética do ator contemporâneo.


      
 

2 comentários:

  1. Oi, Taine,
    esse trecho é retirado de alguma fonte/ Você tem a indicação bibliográfica?

    agradeço sua indicação,

    abraço,
    lúcia romano

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  2. Olá, Lúcia!
    Esse post é um artigo da Heloísa, publicado no livro "Entre Coxias e Recreios", organizado por Renan Tavares e publicado pela editora Yendis.
    Nós montamos esse blog com intenção de publicar artigos dela, centralizando num só lugar.
    Obrigada pela visita, e volte sempre!
    Abraços,
    Taiane Cordeiro

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